quarta-feira, 10 de junho de 2009

"FORMAÇÃO DO LEITOR":QUANDO O SABER PERDE SABOR

Em princípio, um texto literário parece estar a anos-luz dos textos científicos. O que os une são as palavras. E só. Um engenheiro gosta de poesia? Nem pensar. Um poeta interessado em buracos-negros, quanta ou nanotecnologia? Somente enquanto metáforas! Nossa "vã filosofia", no entanto, trapaceia conosco o tempo todo, pois médicos, engenheiros, arquitetos contam-se às dezenas entre os poetas e romancistas. Guimarães Rosa, Pedro Nava, Jorge de Lima e Moacyr Scliar são, ou foram, médicos; Euclides da Cunha, engenheiro e Murilo Mendes, dentista. Como então duvidar que a escola, responsável pela transmissão de saberes e formadora dos futuros profissionais da ciência, não possa lidar com a literatura? Pode, sim. Talvez tenha dificuldade em fazê-lo, mas reúne em latência as condições necessárias para tratar adequadamente a literatura, de forma a obter dela modos de ver e compreender a realidade, que permitam somar-se aos conhecimentos científicos, técnicos e culturais, a dimensão estética, de sensibilidade e de reflexão próprios da literatura.
Em primeiro lugar, faz-se necessário deixar de lado a pretensão de transformar a literatura em aula de língua portuguesa ou em lições de moral e de comportamento. A dimensão moral do texto literário tem a ver com o mundo ficcional. Se assim não fosse, as narrativas virtuosas das fábulas e contos tradicionais deveriam dispensar os vilões, porque só os heróis interessariam à escola. Como explicar a adesão dos alunos ao lobo mau, aos vampiros, a Pedro Malasartes e a todos os personagens espertos e amorais das narrativas? Serão os leitores pervertidos e amorais, eles também? Não acredito. Apenas lêem os textos com olhares de ficção (reconhecem mecanismos narrativos, abusam do pacto ficcional proposto pelo texto, vivem a identificação inconsciente, percebem não racionalmente as utopias da literatura). Por isso, mal compreendem e só aceitam quando imposta a interpretação maniqueísta e/ou moralista do professor. Entre a ingênua Bela Adormecida e a poderosa fada Malévola, entre o repetitivo Príncipe Encantado e a esperteza vitoriosa de Malasarte, qual é a provável opção do aluno?
Monteiro Lobato, ao querer ensinar o povo do Sítio do Picapau Amarelo – e por extensão os leitores – conteúdos de aritmética, geografia, história, política, língua portuguesa, botânica e biologia, astronomia e geologia, teve que recobrir a informação científica com várias camadas de fantasia e ficção. O que resta hoje de seus livros de saberes? Sobrou o que transcendeu esse saber: a convivência natural com o imaginário, a capacidade das palavras tirarem do nada seres quase gente de carne e osso, como Pedrinho, Tia Nastácia, Dona Benta, Quindim, Visconde, Narizinho e a maravilhosa Emília, a anti-aluna, segundo os padrões da época.
Essa lição não foi esquecida por Ana Maria Machado, filha intelectual de Lobato. Ela lançou, em 2006, um livro intitulado Procura-se lobo. Nele, a defesa do meio ambiente (precisamente a extinção de espécies de lobos, como o lobo-guará) está profundamente enraizada numa narrativa cativante e alusiva, repleta de outras histórias, que têm o lobo como protagonista e vilão: Os três porquinhos, O lobo e o cordeiro, Chapeuzinho Vermelho, a lenda da fundação de Roma e muitas outras. Perfeita narrativa, com humor, criatividade, contextualização do universo das histórias infantis e um rápido fecho ecológico. Hipertrofiar o aspecto narrativo, alargando o final ecológico, seria submeter o texto aos interesses da escola, traindo assim sua unidade literária.
Também em Pinóquio, de Carlo Collodi, escrito em 1883, já era narrada a história de um boneco avesso a todos os ensinamentos, rebelde em relação à escola, aos adultos e ao bom-senso. A narrativa é repleta de lições e frases moralistas que, naturalmente, envelheceram. O que salva o texto é a busca incessante do boneco pela humanização. Seus defeitos e desobediências lhe garantem a humanidade. A literatura que trata de valores que transcendem os saberes escolares venceu mais uma vez. A narração educativa não conseguiu sobreviver ao personagem e sua significação mais profunda.
Nesses exemplos, o sabor ficcional predominou sobre o saber fechado e escolarizado, mesmo que dotado de boas intenções.
Marta Morais da Costa
Doutora em Literatura Brasileira, professora da UFPR e da PUCPR, escritora e estudiosa da área de leitura, dramaturgia e literatura infantil e juvenil

Um comentário:

  1. Este artigo além de muito interessante vem reforçar a idéia que a literatura não tem função específica. Ela está acima de qualquer funcionalidade, existe apenas para tornar os seres mais felizes, ou seja , ela é divina.

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